quarta-feira, setembro 19, 2007

Burgher King Lear no Porto

Burgher King Lear

Teatro Carlos Alberto
Porto
20-23 Setembro 2007
Quinta-feira a Sábado 21h30
Domingo 16h00




Anton Skrzypiciel e Miguel Borges interpretam Burgher King Lear, uma criação de João Garcia Miguel. Anton Skrzypiciel é o rei louco. Será louco? Miguel Borges assume todas as outras personagens da peça. Dois actores que valem por vinte, em duas horas que passam num instante, tal a qualidade do texto adaptado por Garcia Miguel, e das interpretações. A não perder. Aqui fica um excerto de uma entrevista concedida pelos criadores a Cláudia Galhós, em Janeiro de 2007.


“Porquê ter uma espécie de medo de chegar ao texto e atacá-lo de frente?”*

Processo

Anton Skrzypiciel Louco e intenso. Olhas para este texto e pensas: “É tão belo, tão extraordinário, mas tão imenso”… Isso faz com que as emoções em que és apanhado a representar ou a integrar sejam indescritíveis. Houve um momento muito importante, quando chegámos ao ponto de decidir que não podíamos dividir a personagem do rei Lear por duas pessoas e que isso tinha de ficar estabelecido. Ao capturá-la apenas em duas pessoas, tens a consciência de que estás a pedir ao público que identifique muito claramente o que são ou quem são aquelas personagens. E o que dizem sobre o mundo.

Miguel Borges Foi muito marcado pelo facto de serem dois actores a fazer uma peça com mais de vinte personagens. Acho que foi aí que tudo começou. Surgiu o primeiro problema, os problemas são óptimos. A partir daí tudo se começou a maquinar e desenvolver. Se tens dois actores, como é que contas uma história com tantas pessoas? Tens de pôr os actores a fazer as outras personagens. Isso cria a confusão geral, porque o público não vai perceber nada. Essa dificuldade, em si, determina muita coisa. Depois temos de ir resolvendo esses problemas de compreensão. As nossas discussões foram muito baseadas nisso.

Anton Skrzypiciel Cortámos muito texto, mas também inserimos muitas coisas. Houve momentos que saíram porque quebravam o ritmo e houve escolhas muito práticas, que sentíamos que não faziam sentido quando ensaiávamos. Surgiu ainda a ideia de dividir a personagem ainda mais. E o Jonas [João Garcia Miguel] dizia “é intolerável, é intolerável”, porque algumas coisas não faziam sentido. Este sentido do mundo disjuntado, que também acontece por causa das acções do Lear, é apanhado pelo público, porque nós fragmentámos a peça. Portanto, ele está num terreno muito instável. E o Jonas gosta muito desta sensação, ele gosta que o público não apanhe tudo. Mas o interessante é que ele também pensa que o público tem de compreender algo, pelo menos de vez em quando…

Palhaços
Anton Skrzypiciel O Jonas e a Ana Luena, a figurinista, que também é encenadora, chegaram um dia e disseram que nos íamos vestir de palhaços. E isso aconteceu num momento avançado dos ensaios, mas fez muito sentido…


João Garcia Miguel Já tinha esta ideia dos palhaços há muito tempo. Era muito clara para mim, mas era complicado dizer ao Anton e ao Miguel que iam fazer de palhaços, era esquisito. Havia uma imagem que se misturava com a ideia dos palhaços, que depois foi trabalhada. O Anton, a certa altura, falou do homem inglês, como se vestia para jogar golfe… Começámos a trabalhar a partir daí, mexer também um pouquinho com a ideia dos palhaços, ver como é que essa imagem que o Anton trouxe influenciava a ideia dos palhaços. Trabalhei isso com a Luena, mas eles, ao introduzirem essas ideias na sua lógica de representação, deram-lhe um sentido mais vasto, mais amplo. Quando propus um tom um pouco clownesco, eles reagiram com entusiasmo, que era fantástico. Disseram-me que isso lhes resolvia um problema que, na verdade, eu nem tinha sentido. Que era ainda e sempre o problema da representação. Essa máscara permite imensa liberdade, permite fazer coisas verdadeiramente ousadas, que não farias como actor a encarnar uma outra personagem. É estranho.

Liberdade
João Garcia Miguel Uma das coisas que eu, o Anton e o Miguel andamos a fazer na vida é procurar uma certa dimensão de liberdade. Queremos ser livres com o que fazemos e usar isso para viver e para nos relacionarmos com os outros e com o mundo. Por isso achei que um dos sublayers mais ocultos e profundos desta peça devia ser essa dimensão da liberdade do Homem, que o Lear também procura aqui. Essa loucura também toca a ideia da liberdade, de te libertares de uma série de coisas, de fazeres um bocado o papel de maluco, de palhaço. Só que quando quebras essa regra, como o Lear, nesse processo de liberdade, às vezes escorregas para lugares que podem ter dimensões descontroladas e inesperadas…

É disto que se trata
João Garcia Miguel Quando o Anton e eu descobrimos que o Harold Bloom diz que o Shakespeare é “a invenção do humano”, tudo aquilo começou a fazer ainda mais sentido.

Anton Skrzypiciel O processo da peça é essa descoberta do ser humano em Lear, de quem ele realmente é. Começa de um modo muito simples, e à medida que a peça vai evoluindo ele vai revelando-se. Tudo lhe é retirado, tudo o que ele tem ou alguma vez foi. Fica o ser humano, esse ser destruído, no final.

João Garcia Miguel E isso remete para tudo. Para a dimensão plástica, para a cenografia, a música, os figurinos, a relação com o texto, a relação entre os actores. Em todas as minhas peças tenho procurado essa questão do humano, que tem esta fantasia da perfeição, que procura constantemente. A perfeição é uma fantasia, a fantasia do próprio humano, que é imperfeito, cheio de riscos, e de sangue e joelhos tortos e cabeças partidas e mau cheiro.

Anton Skrzypiciel O Lear quer deixar de ser rei para ser um homem. E o que ele descobre enquanto ser humano normal é realmente algo de muito inesperado e inimaginável. Às tantas, ele percebe que nunca soube nada sobre como as pessoas realmente são. Ele nunca imaginou que seria tão vulnerável ao mundo. É disto que se trata.Vai-lhe às trombas.

João Garcia Miguel Nas últimas peças que fiz, desde 2002 para cá, as personagens falam todas que se desunham, aquilo tem imenso texto, mas não sei porquê. Pode mudar a qualquer momento e disparar para outra lógica qualquer. Trabalhar com os textos é uma necessidade que sinto neste momento. Talvez tenha a ver com a minha ignorância, a necessidade de conhecer outras coisas. E também acho que os mortos andam a querer falar connosco, e nós andamos um bocadinho surdos em relação a isso. É muito importante perceber o que outras pessoas pensaram, o que outras pessoas viveram. Os gajos viveram coisas muito malucas, tão malucas quanto as nossas. Nós estamos, da maneira mais humilde possível, a tentar fazer bom teatro. E o bom teatro faz-se com bons textos. Mas não podemos ter medo do texto, nem tentar fazê-lo à parva como a maior parte do pessoal faz. Porquê ter uma espécie de medo de chegar ao texto e atacá-lo de frente? Ele está ali mesmo a pedir porrada. Se gostas dele, vai-lhe às trombas. O amor é feito desta intensidade, não tens de ter medo.

*Montagem e adaptação de excertos de uma entrevista inédita concedida por João Garcia Miguel, Anton Skrzypiciel e Miguel Borges a Cláudia Galhós (Jan. 2007).

tradução, adaptação e encenação João Garcia Miguel
cenografia e figurinos Ana Luena
música Rui Lima, Sérgio Martins
desenho de luz Mário Bessa
vídeo Jaime Gonçalves
caracterização Jorge Bragada

interpretação Anton Skrzypiciel, Miguel Borges

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